terça-feira, 31 de março de 2009

Amizade, Política, Futuro, Devaneios....

Como é que é somos capitalismo? Ou melhor como nos tornamos capitalismo?
Um dia desses eu estava pensando na época em que eu era militante de uma organização política...Sabe, estou sempre pensando nessa época, para me entender um pouco o que sou hoje e para entender o processo pelo qual um pequeno, e aparentemente sólido, grupo de amigos, do qual eu fazia parte, explodiu em pedaços...
Muitos hoje se consideram inimigos, não falam mais entre si nas raras vezes em que se encontram, mas costumam falar mal uns dos outros para aqueles que são próximos agora...
Estão em partidos diferentes ou fora dos partidos e tudo aquilo que conversávamos quando éramos jovens sobre sermos diferentes, amarmos a humanidade, sermos livres, sobre estarmos quebrando paradigmas, tudo isso não suportou o teste do tempo...
Apesar de não sabermos disso à época, nossas palavras eram frágeis, muito frágeis, baseadas num consenso forte, mas provisório, forjado na luta social...E, portanto, não suportou o dissenso...
A política na nossa sociedade não é algo que possa ser feito em grupo, ou melhor, só pode ser feita em grupo até a primeira eleição ganha, depois disso o grupo é convidado a se enquadrar no perfil da política baseada nas personalidades públicas e assumir, desse modo o seu papel de claque e suporte à personalidade do momento.
A degeneração do grupo em claque é uma sombra que acompanha o movimento socialista.Sempre achamos que Stalin é algo longe e aterrador. Sim, é aterrador, mas está em nós mesmos, sendo criado e alimentado pouco a pouco pela instituições da democracia representativa. Por que temos palavras tão belas e por que elas são tão frágeis? Por que não conseguimos nem sequer manter uma amizade que não seja baseada numa profissão de fé comum? Por que amigos de vinte anos se tornam inimigos virulentos?
No nosso grupo nós costumávamos criticar os excessos das revoluções por causa das suas mortes e por causa da face autofágica que a luta assumia em determinados momentos...Mas, vejam só!, bastou uma mera prefeitura para que nos considerássemos inimigos e apontássemos os dedos uns pros outros chamando-nos de traidores.
Vamos imaginar agora que não fosse uma prefeitura, mas fosse um país inteiro...Que finalmente estourou um processo revolucionário...Quem de nós estaria, hoje, sendo contado entre os mortos? Quantos de nós sobreviveriam? Quem seriam os traidores e quem seriam os heróis? Quanto do sonho da bela utopia restaria no final? talvez apenas as belas palavras e as fotografias de jovens imaturos apaixonados por um ideal demasiado grande e igualmente imaturo...
Mas só nos damos conta disso quando, pouco a pouco, tudo aquilo que fora aparentemente destruído é finalmente reconstruído e pintado com cores novas, para que a próxima geração o destrua e reconstrua de novo...
Mas o interessante dos tempos de hoje, diferentemente de todos os tempos anteriores, é que não temos mais todo o tempo do mundo, não temos mais o futuro como uma certeza definitiva, seja o que for.
Não temos mais tanto tempo, não é mais a questão de termos ou não socialismo ou qualquer outra utopia no futuro, de termos ou não a barbárie como possibilidade...É termos ou não futuro simplesmente, ou seja uma expectativa prolongada num tempo indefinido de que, enquanto espécie, ao menos existamos. Isso deveria mudar muita coisa, o modo como nos vemos uns aos outros e o modo como encaramos nossa relação uns com os outros.
Acho que quando temos consciência de que vamos desaparecer o valor que damos às coisas muda enormemente. Tudo o que parecia importante e crucial e supremo e objetivo e bom e verdadeiro se desfaz...
"Tudo o que é sólido se desfaz no ar", já diria um mestre nosso...Uma discordância política se transforma em nada, se transforma num buraco da bolacha cream cracker...
Mas quando quando não percebemos essa ausência de futuro, o buraco da bolacha vira uma motivação suprema para matar ou morrer, transforma-se em verdade sagrada...
É como as galinhas brigando por milho, minutos antes de serem decapitadas...
Ao contemplar a ausência de futuro da minha espécie ou possibilidade iminente dessa ausência eu prefiro cultivar a amizade, a gentileza...Se existe algum futuro possível ele está assentado largamente sobre a nossa capacidade de sermos amigos, de sermos gentis uns com os outros, com os animais, com a natureza.
Considero-me uma pessoa muito afortunada em ter e cultivar amizades em poĺos políticos e sociais que se enfrentam. Fiquei muito menos arrogante e sabido, apesar de continuar um pouco arrogante e metido a sabido. Descobri que posso permanecer amigo sem a necessidade de me associar a eles nas suas práticas que não considero saudáveis. Descobri que todos estamos aprendendo a duras penas a viver e conviver e a transformar nossa realidade e que se a boa intenção só não basta, sem ela estamos perdidos. Com meus amigos e comigo mesmo, aprendi que podemos perder as boas intenções. Isso pode acontecer com qualquer um. Quando nos damos conta já estamos com a arma na mão prontos pra atirar. As boas intenções são plantinhas frágeis, difíceis de cuidar quando elas estão crescendo. Elas precisam de atenção, de presença, de água e sol. Quando temos um grupo de amigos conscientes do perigo, teremos a chance de vê-las crescer a um ponto em que não serão mais tão frágeis. Mas se agimos sozinhos, teremos uma tentação enorme de trocarmos elas por plantinhas de plástico...

domingo, 22 de março de 2009

Tardezinha na Praia de Iracema

Hoje à tarde sai para dar uma caminhada por aqui por perto de casa,
na Praia de Iracema,na esperança que uma chuva forte
me pegasse no meio do caminho e eu tomasse o meu banhozinho que
está ficando costumeiro...
A chuva não veio, mas a caminhada foi maravilhosa...Poucas pessoas se aventuravam a
passear, medrosas só com a ameaça da chuva...
Mas eu sou do tempo em que, em Quixeramobim,
olhávamos para o (raro) céu cinza e com nuvens carregadas
e dizíamos "Ói, o tempo hoje tá bonito pra chover!!"
E se chovesse, era possível ouvir os gritos de alegria por toda a cidade
e nós, as crianças, íamos direto tomar banho nos "jacarés" da igreja,
as melhores e mais fortes bicas da cidade. Minha mãe ficava em casa,
esperando a água limpar as telhas primeiro, antes de jogar o cano da calha
para dentro da cisterna e resolver nossos problemas com água pelos próximos meses...

Mas na beira da praia dava pra se ouvir gritos de jovens
aproveitando a praia deserta pra tomar banho e se divertir sem
os olhares dos incomodados - gritando aquele velho nosso conhecido
grito de guerra do cearense moleque...
Para quebrar o bucolismo do meu fim de tarde
alguém finalmente se aproximou de mim e ofereceu sexo...
Sorrindo dessas coisas das nossas praias, eu disse,
"não, meu filho, muito obrigado".

sexta-feira, 6 de março de 2009

Meditação da Comida

Traduzi este texto sobre o modo como comemos em Plum Village e nos Centros de Prática no resto do mundo:

"Este pedaço de pão é um embaixador do cosmos inteiro.

Comer uma refeição juntos é uma prática meditativa. Devemos tentar oferecer nossa presença para cada refeição. Podemos começar a praticar já no momento em que nos servimos, refletindo sobre quantos elementos, como a chuva, o sol, a terra, o ar e amor se reuniram para constituir essa refeição. De fato, através da comida podemos ver que o universo inteiro está sustentando nossa existência.

Ficamos conscientes de toda a comunidade enquanto nos servimos e devemos pegar apenas aquela quantidade que é necessaŕia para nós. Antes de comer, convidamos o sino a soar por três vezes, desfrutamos da nossa respiração e praticamos as seguintes cinco contemplações:

- Esta comida é uma dádiva da terra, do céu, de numerosos seres vivos e de muito trabalho duro;
- Que possamos comer com plena consciência e gratidão para que mereçamos receber o alimento em nosso corpo;
- Que possamos reconhecer e transformar nossas formações mentais não-saudáveis, especialmente nossa avidez, e aprendamos a comer com moderação;
- Que possamos manter viva a nossa solidariedade comendo de modo a reduzir o sofrimento dos seres vivos, proteger nosso planeta e impedir o processo de aquecimento global;
- Aceitamos esta comida como uma maneira de nutrir nossa fraternidade, fortalecer nossa comunidade (Sangha) e alimentar o nosso ideal de servir a todos os seres.

Devemos comer com calma, mastigando bem cada porção, no mínimo 30 vezes, até que a comida se liqüefaça. Fazer isso ajuda o nosso processo digestivo. Vamos aproveitar cada pedaço de nossa comida e a presença de nossos irmãos e irmãs de dharma à nossa volta. Vamos nos estabelecer no momento presente, comendo de tal forma que a solidez, a alegria e a paz sejam possíveis durante a refeição.

Ao comermos em silêncio, a comida se torna real com a nossa plena consciência e ficamos totalmente atentos ao processo de nutrição acontecendo. Para aprofundar nossa prática de comer com plena consciência e alimentar a atmosfera de paz, permanecemos sentados durante o período de silêncio. Depois de vinte minutos de silêncio, convidamos o sino a tocar novamente duas vezes. Nesse momento, podemos conversar algo saudável como nossos amigos e começar a nos levantar da mesa.

Ao finalizar a refeição, dedicamos alguns momentos para tomarmos consciência de que acabamos de comer, de que o nosso prato está vazio e de que nossa fome está saciada. Assim, enchemo-nos de gratidão ao percebermos como somos afortunados por termos uma refeição para comer, sentimento que nos apóia no nosso caminho de amor e sabedoria".

terça-feira, 3 de março de 2009

O Leitor

Um dia desses vi um filme excelente com amigos: "O Leitor" não quero aqui me deter em contar a estória do filme, mas gostaria de desenvolver uma coisas que me surgiram na cabeça imediatamente...Mesmo durante o filme.

Um dos personagens centrais do filme é uma alemã de nome Hanna Hanitz (se não me falha a memória), nos anos que sucederam a II Guerra Mundial. Mulher extremamente orgulhosa que por viver tentando encobrir uma vergonha pessoal acaba por ir trabalhar para as SS nazistas. E nesse trabalho, como era de se esperar, envolve-se diretamente com os processos de assassinato em massa.

Em uma certa altura do filme, mostra-se uma cena em que ela e outras funcionárias das SS eram julgadas pela morte de 300 prisioneiras. O interessante não é nem que ela, em nome de seu orgulho, prefira assumir algo que não fez. É o modo como ela fala dos anos da guerra. Uma moça pobre, muito disciplinada, uma cidadã exemplar - fala de um jeito simples, sem hipocrisia, sem peso na consciência, ou seja, de um modo desconcertante (para os juízes e advogados) sobre o consenso nacional da sociedade alemã da época em aceitar a matança organizada como um elemento natural e comum da vida social.

Ela fazia parte ativa dessa sociedade, fez o papel que a sociedade espera dela e simplesmente não entendia por que estava sendo criticada ao ter cumprido o seu dever como funcionária pública. O coroamento de sua atitude é quando, a uma certa altura ela pergunta ao advogado, com um ar entre surpresa e desafio "O que o senhor teria feito em meu lugar???". Talvez ela pensasse, "é fácil criticar agora que o mundo todo nos condena, mas e o senhor? onde o senhor estava mesmo?"

Um grande amigo meu exclamou "Olha a banalização da violência!!"

E é isso mesmo.

Olhemos agora para nós mesmos. Em vez daquelas mulheres no banco dos réus, estamos nós: samuel, renato, paulinha, joão, pedro, isa, manuel, maria, rosa, ranulfo...

A acusação nos pergunta com ar grave e veemente: "É verdade, que vocês bebiam cerveja mesmo sabendo que, a poucos quilômetros de vocês, milhares de pessoas não tinham água para beber? Que vocês se davam ao luxo de consumir quantidades extravagantes de água pelo simples prazer de uma diversão? Que vocês consumiam combustível sem necessidade, jogando monóxido de carbono na atmosfera só para se deslocar de um lado para o outro para assistir filmes, ir para bares, passear na praia, etc?".

Poderia me estender e muito...Fico só me lembrando que o advogado de acusação poderia também me acusar de jogar 100 litros de água potável numa máquina para lavar 5 quilos de roupa, por que a minha máquina de lavar é uma brastemp que tem um super-enxágüe duplo!!

Poderia me lembrar também dos litros de detergente que uso para lavar a louça só para sentir o cheiro de maçã nos meus pratos e panelas...Bem, e só para ficar nos meus usos da água...Sem passar para o consumo de artigos supérfluos...

Talvez eu perguntasse também à acusação: "O que você queria que eu tivesse feito? Eu posso dizer que eu fui até um crítico da sociedade!". E retornaria para ele a mesma pergunta: "E você aonde estava?", meu último subterfúgio...

Banalização é exatamente isto...

Estamos sempre fazendo o que esperam que nós façamos. Por que qualquer coisa que todo mundo faça se torna banal, seja um massacre ou o desperdício d'água...

Podemos respirar aliviados por que não somos culpados sozinhos ou fomos só cumplices.

Estamos a salvo por que, aparentemente (e apenas aparentemente), não sofremos de um modo agudo, direto e imediato as consequências de nossos atos.

E, no fim, a acusação poderia muito bem me responder: "Eu era um bebê nessa época!"

Eu sou Hanna Hanitz e, ainda por cima, sei ler...